terça-feira, outubro 26, 2010

JUSTIÇA CEGA?

Olá!!

Trago hoje pra você uma sentença. Muito dez, como diz minha netinha. Você vai amar! Aposto. É bem antiga, mas superatual. Veja a sensibilidade do juiz e o excelente contraponto que ele faz entre Direito e Justiça.

Aconteceu em 1979 na 5ª Vara Criminal de Porto Alegre. Abriram inquérito contra um desempregado, pela contravenção de VADIAGEM e o juiz Moacir Danilo Rodrigues, arquivou "ex officio" o tal inquérito criminal. Veja só:
"Marco Antônio Dornelles de Araújo, com 29 anos, brasileiro, solteiro, operário, foi indiciado pelo inquérito policial pela contravenção de vadiagem, prevista no artigo 59 da Lei das Contravenções Penais. Requer o Ministério Público a expedição de Portaria contravencional.

O que é vadiagem? A resposta é dada pelo artigo supramencionado: "entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho..."  
Trata-se de uma norma legal draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau-de-arara do Nordeste, o bóia-fria do Sul. O filho do pobre que pobre é, sujeito está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar os meios de subsistência. Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito. Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso. 
Marco Antônio mora na Ilha das Flores (?) no estuário do Guaíba. Carrega sacos. Trabalha "em nome" de um irmão. Seu mal foi estar em um bar na Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que estivesse numa uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante de Petrópolis, ou ainda numa boate de Ipanema? 
Na escala de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de cana, num bolicho da Volunta, às 22 horas e não tem documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo carro, com a carteira recheada de "cheques especiais", é um burguês. Este, se é pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga a fiança e se livra solto. Aquele, se não tem emprego é preso por vadiagem. Não tem fiança (e mesmo que houvesse, não teria dinheiro para pagá-la) e fica preso. 
De outro lado, na luta para encontrar um lugar ao sol, ficará sempre de fora o mais fraco. É sabido que existe desemprego flagrante. O zé-ninguém (já está dito), não tem amigos influentes. Não há apresentação, não há padrinho. Não tem referências, não tem nome, nem tradição. É sempre preterido. É o Nico Bondade, já imortalizado no humorismo (mais tragédia que humor) do Chico Anísio. 
As mãos que produzem força, que carregam sacos, que produzem argamassa, que se agarram na picareta, nos andaimes, que trazem calos, unhas arrancadas, não podem se dar bem com a caneta (veja-se a assinatura do indiciado à fls. 5v.) nem com a vida. 
E hoje, para qualquer emprego, exige-se no mínimo o primeiro grau. Aliás, grau acena para graúdo. E deles é o reino da terra. Marco Antônio, apesar da imponência do nome, é miúdo. E sempre será. Sua esperança? Talvez o Reino do Céu. A lei é injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o juiz não é. Por isso: Determino o arquivamento do processo deste inquérito.


Porto Alegre, 27 de setembro de 1979.
Moacir Danilo Rodrigues - Juiz de Direito - 5ª Vara Criminal."
(Fonte: Suplemento Jurídico do DER/SP nº 108, de 1982)

Beijos.

10 comentários:

  1. Oi,

    Maravilhoso e atual.

    Apenas teremos um mundo de paz e civilizado no dia em que todos tiverem o sagrado direito à oportunidade de trabalho, não necessariamente como empregado de outrem.

    Desconfio até que a própria corrupção se tornaria mínima em tal situação.

    Saúde e felicidade.
    JPMetz

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  2. Oi Marli!
    Suponho que não haverá grande diferença entre 1982 e 2010, no que toca a diferenças entre Direito e Justiça.Infelizmente, as leis dos homens nem sempre são justas ou não se aplicam com justiça.
    Alguém disse, não sei o autor: There is no justice. Just us.

    BEIJOS GRANDES
    POSTS MUITO DEZ!!!!!
    Curiosidade: vc gosta de Ferreira Gullar?

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  3. Exemplo de sensibilidade e discernimento(e JUSTIÇA).
    O caso da menina Joanna poderia ter estado em melhores mãos, como essas...

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  4. Gostei do seu artigo porque nos obriga a pensar e concluir que a justiça continua cega e surda e que nem sempre ela actua com igualdade.
    Tantos casos que parecem anedotas pelas injustiças praticadas..........

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  5. Marli amiga,

    Adorei! Aliás, como diz sua netinha "muito dez!"... hehehehe...
    Beijos, flores e muitos sorrisos!

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  6. Infelizmente, somos uma sociedade longe de ser realmente justa...

    Fique com Deus, menina Marli Borges.
    Um abraço.

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  7. Olá Marli
    Infelizmente ainda falta muito, para nossa sociedade ser realmente justa e igualitária.
    Bjux

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  8. Ainda bem que o Juiz não era cego e nem burro.
    Brilhante!!
    Beijos

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  9. Marli!! SAUDADE daqui! Enrolada como um novelo de lã, mas valeu a pena correr e vir ler essa sentença! Gostei muito da penúltima oração: "Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o juiz não é." Lembro-me quando fui à Florianópolis para o segundo encontro de Direito Alternativo - boas lembranças de jovem sonhadora com a justiça justa... Um beijão, Deia.

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  10. Olá,Marli querida
    E por falar em Justiça:
    Venho propor-lhe algo no meu post de hoje...
    Conto com sua participação amiga.
    Excelente semana,cheia de ricas bênçãos!!!
    Abraços fraternos

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BOM VER VOCÊ POR AQUI!
Procurarei responder a todos e retribuir as visitas com a maior brevidade possível. Abraços. Marli