Quando li pela primeira vez o livro de Isabel Allende "A Casa dos Espíritos", gostei muito, e tempos depois, quando tornei a ler, com uma bagagem de vida um pouquinho (hehehe!) maior, simplesmente adorei! Sou fã de realismo fantástico e este é um dos fios condutores da escrita de Allende. (Notáveis influências de Garcia Marquez, que é outro escritor que amo de paixão).
Quando foi lançado, em 1985, "A Casa dos Espíritos" foi um sucesso absoluto. O livro tem quase 500 páginas e a gente entra num mundo mágico desde a primeira frase. A história é comovente, marcada pela magia, pelo amor e pela tragédia. Arrependi-me de não ter feito esse post no dia 08 de março, o tal de "dia da mulher". É que Isabel Allende, nesse livro, presta tributo às mulheres do mundo inteiro, na medida em que traz à tona, a dor de toda uma geração de mulheres chilenas. E ao mostrar a violência do regime totalitário, do machismo e da misoginia do poder patriarcal (sempre fortalecido no aparelho repressivo do Estado), ela nos convida a exorcizar a culpa e a refletir sobre a liberdade e a justiça. Pelo que sei, boa parte da história é verídica e ela própria, quando questionada a respeito, afirmou que as mulheres da história realmente existiram. Bom, é só ler a dedicatória:
"A minha mãe, minha avó e às outras mulheres extraordinárias desta história." E atenção, o livro é também um alerta aos que vivem acostumados à anestesia do esquecimento:
"É a perda da memória, e não o culto à memória, que nos fará prisioneiros do passado".
O romance se passa, no início do século XX e conta a história das famílias Del Valle e Trueba, com suas ideologias totalmente opostas. A revolução no Chile que terminou com o golpe militar de 1973 e derrubou o presidente Salvador Allende (tio da autora) é o cenário que influenciou a dinâmica da narrativa.
Tudo gira ao redor do patriarca Esteban Trueba, mas a narrativa é feminina, sob a perspectiva das mulheres (do clã), que lutam pelo que acreditam. Mas, a meu ver, não é uma narrativa feminista, é bem mais profunda do que isto, pois mostra a luta da mulher pelos seus direitos, numa sociedade tipicamente masculina. No decorrer da leitura, a gente se depara com dois discursos, de um lado a verdade masculina-conservadora, e de outro, a feminina-progressista. No entanto, e, no meu pensar, esse é o grande diferencial da obra, o leitor tem possibilidade de reconhecer as razões de cada personagem, num exercício dialético que democratiza o próprio espaço textual.
Clara, Clarividente como era chamada, é o personagem principal e está presente na história, desde a infância até sua pós-morte. Ela é o alicerce da família, o equilíbrio e o elo de ligação entre todos. Com seus incompreendidos poderes premonitórios e visão espiritualizada da vida, desde pequena, Clara surpreendia a todos com suas capacidades telepáticas - conseguia ler a sorte, mover objetos com o pensamento e prever o futuro. Sua capacidade telepática era tão acentuada que os objetos movimentavam-se como se tivessem vida própria. Em seus cadernos de anotar a vida, escrevia o que sentia e colocava lá tudo o que acontecia no dia-a-dia. − Aliás, a saga da família, Alba só conseguiu relatar porque Clara (sua avó) deixou registros em seus "cadernos de anotar a vida". − A morte misteriosa de sua irmã Rosa, "a Bela", fez Clara emudecer de culpa, achando que sua previsão teria dado causa àquela morte prematura. Só quebrou o silêncio, nove anos depois, para anunciar que se casaria em breve. O noivo? Esteban Trueba, que ela já havia previsto, muito tempo antes, que se tornaria seu marido.
Para os padrões da época, Clara não foi uma boa dona-de-casa. Estava sempre às voltas com suas telepatias e premonições. Vivia num mundo à parte, ajudava os necessitados e conversava com os espíritos. Era ausente, mas sempre presente na família. Era avessa a assuntos fúteis e não sentia ciúmes do marido,
"nem ao menos percebia quando ele a desejava ou sentia ódio por ela, era distraída". Com sua inteligência brilhante, ela sabia que o medo era o alicerce do sistema de dominação a que os camponeses e as mulheres eram submetidos naquele momento histórico. (E essa inteligência sensível sempre irritou seu marido, afinal ele era a autoridade, o pai e senhor... Jamais ele poderia imaginar que seu temperamento impulsivo, violento e cruel e que suas idéias arcaicas refletiriam com tanta contundência no futuro de sua família).
Esteban Trueba era um homem truculento, representante ferrenho da sociedade falocrática, que nega à mulher voz e participação na sociedade. Acreditava que Nívea (mãe de Clara) estava "
mal da cabeça" porque ela lutava para que as mulheres tivessem direito ao voto. Ele nunca compreendeu a força do silêncio de Clara, ao contrário, ele o considerava (o silêncio) uma virtude.(!) Era dado a acessos de raiva e Clara sofreu muito nas mãos dele. Também costumava descarregar sua ira contra os trabalhadores, que no seu entender não tinham direito nenhum, apenas deveres. Mas ao ler a gente acaba percebendo que também ele, era fruto de uma época, cujos valores o tornaram um homem solitário, amargo e rancoroso. Associava o autoritarismo ao paternalismo, transformando em dependentes os que o cercavam, e comprava-lhes a fidelidade com alguns litros de leite e bônus cor-de-rosa (trocados nos armazéns da fazenda que eram seus), casinhas de alvenaria e uma escola, mas era partidário de que os camponeses não tivessem muitos conhecimentos, pois sabia que a ignorância daquele povo é que eternizava os privilégios que possuia.
Cada um dos personagens está retratado na história com seus questionamentos existenciais e suas formas de participar no contexto social de sua época.
Impressionou-me o significado dos nomes das mulheres: Nívea, Clara, Blanca e Alba. Observe a escolha que a autora fez desses nomes. Todos eles estão carregados de simbologia, compondo uma cadeia de sinônimos que aponta para a LUZ. Alba, último elo dessa cadeia, é o alvorecer de um novo dia, uma esperança e uma promessa. Aliás, a própria estrutura circular da escrita, que começa e termina com a mesma frase, nos remete para uma idéia de recomeço:
"Barrabás chegou à casa da familia por via marítima". Há ainda outra mulher, de importância ímpar, chama-se Férula, cujo nome também é simbólico. Ela é a irmã e o "carma" de Esteban. Como se vê, Allende brilhou também nesse particular.
Chega, vou parar senão me empolgo e conto o livro. ;)
Que livro!
Era isso. Fui. Até breve.
A t u a l i z a n d o : esqueci de falar no filme. Não gostei, não tem nada a ver com o livro, muda completamente o foco. A meu ver, transforma e banaliza uma história tão linda!( Aff). Não é que o filme seja ruim, entenda. Acontece que não é a história contada no livro, ah isso não!! Não é
mesmo!! Ouvi dizer que Allende abominou, parece até que surgiram alguns problemas, mas não tenho certeza. Mas se é verdade, ela está com toda a razão.
Gente, olhem essa palestra de
Allende, é de chorar!