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sexta-feira, novembro 26, 2021

O TCHUCO

A valentia sumiu e a voz tremeu
Cuidado, ele está vindooooo...


- Marli Soares Borges



Eu sei que você não sabe, mas é dele que eu quero falar. 

"Tchuco" é o nome que demos a uma entidade sobrenatural que existe - "de verdade" - aqui no sítio e que aparece na mata, em noites de lua cheia, geralmente no verão. Todos daqui já o viram e cada qual tem um 'causo' espantoso, mágico ou inesquecível para contar. 

Eu também tenho.

Aconteceu em meados de 1995, 96, sei lá. Mas foi há quase trinta anos. Era tudo gente moça, na faixa dos vinte e poucos; menos eu, que beirava os quarenta.

Quando meu irmão mais moço, - bem mais moço do que eu - começou a contar as peripécias do Tchuco, os colegas dele não acreditaram. Talvez porque os 'causos' denunciassem a existência de um ser sobrenatural aqui no sítio, não sei. O fato é que eles achavam tudo muito estranho e impossível de acontecer. Mas meu irmão insistia: "gente é a mais pura verdade!" e os amigos insistiam em dizer que era pura conversa fiada. Ah é? pensam que estou mentindo? Cansei. Agora eles vão ver o que é bom pra tosse. Vou armar uma pegadinha e eles irão acreditar na marra. Me aguardem. E, com essa ideia na cabeça, meu irmão continuou a contar as histórias, mas passou a caprichar nos detalhes e, pacientemente, foi povoando de quimeras a memória e a imaginação do grupo.  

Há uma lei universal que diz que quando você estiver com medo, tudo vai te apavorar, qualquer som parecerá aterrorizante. E se você for realmente tomado pelo pavor, não haverá nada que possa ser feito, a não ser correr à toda velocidade até sentir-se novamente em segurança. Mas daí, o medo já atingiu uma intensidade tal, que você só quer saber de enfiar a cabeça num buraco e esquecer esse mundo cruel, rs.

Desta feita, meu irmão combinou com meu filho, então adolescente, para darem um cagaço naquela turma de marrentos. Na sequência, tio e sobrinho trataram de elaborar o cenário perfeito para que o susto "já chegasse assustando". Meu filho rapidamente convidou um auxiliar e sem demora, iniciaram os preparativos. Quem precisa de fantasias se tiverem sacos plásticos, lençóis, cordões e a cumplicidade perfeita dos avós para rápidas montagens e amarrações? Depois é só esperar a hora de agir: nem antes, nem depois, no momento exato. 

Favor prestar atenção aos elementos essenciais da história: medo, - muiiiito medo, - susto e pavor. E os ingredientes: noite de verão, lua cheia, campo, mata fechada, churrasco e cerveja. 

Na data combinada para o churrasco, os amigos chegaram eufóricos, prontos para se divertirem. O grupo era pequeno, pouco mais de quinze pessoas, tudo gente da cidade, ávidos por aventuras em cenários diferenciados e, claro! todos já sabiam da probabilidade de avistarem o Tchuco na mata, entre as árvores. 

A noite estava perfeita e a lua brilhava no céu. Nas noites de lua cheia, a luz é muito clara no campo, mas cria sombras assustadoras na mata. E a mata é um território de imaginações! Pois bem. O churrasco transcorreu de boas. Muita carne, muita cerveja e muita risada. Após a comilança veio a contação de causos de assombro. E mais risadas. Lá pelas tantas, pertinho da meia noite, quando as palavras não cabiam mais na boca, um deles lascou: "e aí, ninguém vai nos apresentar o Tchuco?" 

Meu irmão quase deixou escapar uma risadinha, mas conseguiu se conter a tempo e falou com a maior seriedade: vocês querem mesmo entrar no mato pra verem o Tchuco? Tudo bem, fica logo ali, após aquela clareira, e apontou com o dedo. Mas, já sabem, terão que ir sem lanternas, pois ele só se deixa ver na claridade da lua. Não irei com vocês porque tenho que cuidar das cervejas no freezer, pra evitar que congelem, rs.

Por óbvio, meu filho e seu amigo, - que conheciam o sítio como a palma da mão -, já estavam a postos, escondidos entre as árvores, devidamente paramentados, esperando apenas o momento decisivo para colocarem o plano em ação. 

Com rigor técnico, meu irmão preveniu os amigos que andassem em silêncio, prestassem bastante atenção no entorno, observassem os movimentos do mato e que, sobretudo, ninguém se dispersasse. Que ficassem todos juntos. Arrematou dizendo que se avistassem o Tchuco não haveria perigo: ele é uma criatura estranha, da noite, mas é do bem. E que ninguém precisava ter medo.

Medo? Ora, medo. Era só o que faltava! E por acaso alguém aqui tem medo do Tchuco? uma assombraçãozinha de nada? Quem vai ficar com medo é ele, isso sim! Criatura estranha? Nem vem.

E lá se foram eles, desbravadores, sorridentes, cheios de si, prontos para a grande aventura, talvez a única oportunidade de conhecerem um habitante do mundo sobrenatural. 

Para maior 'segurança', meu irmão foi com eles até um pedaço orientando sobre os cuidados que deveriam ter ao andarem de noite na mata, sem iluminação. Explicou que em alguns lugares a claridade da lua não entra devido a densidade das árvores, e falou sobre como se comportarem caso cruzassem com algum morcego desavisado. Já viram um morcego à luz do luar? E que não se assustassem com as corujas nem com os gambás que saem à noite para se alimentarem. Às vezes aparecem alguns bugios, mas são poucos. 

Recomendados, eles seguiram em silêncio, tão quietos que se ouvia a respiração. 

Assim que avançaram um pouco na mata começaram a ouvir uns estalos. Isso é nas árvores? alguém perguntou baixinho. Apuraram o ouvido e arregalaram os olhos. E começaram a sussurrar: ô meu, olha ali na árvore, que é aquilo? Olha ali, olha ali, tem uma coisa se mexendo ali atrás. Vocês viram o que eu vi, lá adiante? Gente... que é isso? Quéissuuu? Uns sons esquisitos que ninguém conhecia. Seriam sons sobrenaturais? Ou eram apenas os sons do mato e do campo? Seria o andar de algum animal noturno? E aquela sombra encostada na árvore? meu Deus. 

A poucos passos perceberam um movimento rápido como uma chispa. Mais adiante, outro, e mais outro. As chispas sumiam e voltavam e, no escuro, ninguém conseguia ter a menor ideia do que se tratava. E o medo, construído no solo fértil da imaginação, começou a agir. Mas ninguém falou nada, não queriam dar o braço a torcer. 

Foi então que a valentia sumiu e a voz tremeu: é ELE! e numa fração de segundo tudo aconteceu! Foram surpreendidos por um vulto que corria e saltava entre as árvores. Ora aparecia aqui, ora ali, como um relâmpago. Era uma figura esvoaçante e fluída, sem contornos específicos. Tinha uma aura misteriosa que pairava sobre sua cabeça como uma bruma, e seus rápidos movimentos cortavam o ar em manobras inesperadas de avanço e recuo. Um ser extremamente desafiador. Feito um sátiro. Ou um fantasma sem cor. 

A turma congelou. Que fazer, avançar ou recuar? 
C U I D A D O !  ele está vindoooo... 

E, pernas para que te quero!  

Foi um entrevero, uma gritaria como eu nunca tinha visto. Era gente correndo e se batendo, era gente correndo e atropelando os cachorros, era gente enveredando pra dentro das cocheiras e acordando os cavalos, era gente correndo sem rumo pelo campo aberto... um verdadeiro deus nos acuda. Até o galo se confundiu e começou a cantar. 

Aturdidos e incrédulos eles só pararam de correr quando chegaram novamente ao local do churrasco. Ninguém me contou, eu vi: eles tomaram um susto pra ninguém botar defeito! Simplesmente perderam o chão!

Depois do caso passado todo mundo desandou a rir. E ficaram ainda por um bom tempo morrendo de rir, uns da cara dos outros. Ninguém conseguia parar, nem eu. Minha barriga doía de tanto rir. Eu, meu irmão, meu filho e o amigo dele, ríamos por uma razão (você já sabe) e eles por outra. 

E a festa continuou por mais algumas cervejas e outras tantas risadas. Aos poucos, a turma foi pegando a estrada. (naquele tempo podia-se dirigir depois das cervejas). 

Foi uma noite memorável, uma grata e sorridente recordação. 

Não sei se alguém ficou sabendo da 'pegadinha', mas aposto que eles enchem o peito e, orgulhosos, contam pra seus filhos e netos, que numa noite de lua cheia estiveram cara a cara com o Tchuco, um ser sobrenatural, quimérico e desafiador. E que heroicamente sobreviveram. 

E que ninguém duvide, eles não estão mentindo. A mentira é outra; e foi armada em cima de uma verdade que ninguém queria acreditar. E isso é coisa que se faça? Não sei, mas fizeram, e eu vi a cena e os bastidores. E por falar em verdade, onde andará o Tchuco que há tempos ninguém vê? 


* * * * * * * * * *

quinta-feira, setembro 16, 2021

MEU REINO PRA REVER AQUELA TARDE


A Igreja era tão grande, mas tão grande que...

De tempos em tempos começo a fuçar nas minhas lembranças e aparece cada uma! 
O que vou contar é uma história boba, sem a menor graça, mas aconteceu comigo e está na minha cabeça há décadas. E cada vez que lembro, fico com uma pulga atrás da orelha. 


Eu devia ter uns cinco ou seis anos e morávamos - eu e meus avós - numa casa afastada da cidade. Meus dois únicos amigos, Elisa e Marquinhos, moravam na casa ao lado e eram irmãos, lembro deles até hoje. Costumávamos brincar no quintal da minha casa. Mas naquela tarde não teve brinquedo de pega-pega, estava muito calor e o sol fritando. Então resolvemos dar um passeio: visitar a igreja que estava sendo construída ali na esquina, dois terrenos depois. Passamos por debaixo da cerca e saímos escondidos, pois estávamos proibidos de pisar fora do nosso local de brincar. Chegamos na construção e ficamos embasbacados: a igreja era tão grande, mas tão grande que me deu até um arrepio na espinha, parecia que a gente havia encolhido. Olhamos para cima e nosso olhar se perdeu nas alturas. Mas, corajosos, seguimos em frente, pé ante pé, olhos arregalados e bico calado. Todo cuidado é pouco. 

Foi então que vimos os respingos... Pior! sentimos uma saraivada de gotas grossas, milhares, de um vermelho intenso que mais parecia... sangue. Como assim? ninguém está machucado, ai meu Deus, e agora? por que fomos sair escondidos? onde se viu entrar numa igrejona assim, sozinhos? E se tiver um vampiro na tocaia? ou uma alma do outro mundo? por que não ficamos brincando como sempre no nosso santuário? Olhamos pra todos os lados e nada, nenhuma viva alma, um silêncio mortal. E o medo tomou conta de nós. Apavorados saímos dali à toda velocidade, correndo a mil, debaixo daquele sol escaldante. Cheguei em casa alucinada, no maior suadouro e lembro que minha vó me abraçou e não disse uma palavra, apenas secou meu rosto, me deu um pouco d'água e esperou até que eu me acalmasse. Mais tarde ela pediu pra eu contar "tudo", mas não havia nada para contar. Ninguém tinha um arranhão sequer, ninguém sentiu nenhuma dor e ninguém viu nada perigoso. Pensei, pensei e a única coisa real que vimos, uns nos outros, foram uns respingos vermelhos nas nossas roupas. E era coisa pouca. 

Por causa desse "passeio" escondido, fiquei de castigo um tempão sem brincar com meus amigos (que também ficaram de castigo).

Não tem mais minha vó, não tem mais Elisa, não tem mais Marquinhos e minha casa de menina não existe mais. Fecho os olhos para ver melhor e... ah, como eu queria colher margaridas com minha vó, uma vez só, só mais uma, naquele canteiro tão lindo que ela plantava e cuidava com tanto amor! 

Faz bem uns trinta anos que passei por lá novamente, queria rever um pedacinho da minha vida. E avistei a igreja. Sim, ainda existia, desgastada pelo tempo. E para minha surpresa, era uma igrejinha minúscula, pouco mais que uma capela. Meu olhar infantil viu além da aparência e o medo deve ter completado o 'serviço', rs. Quando lembro desse 'causo' sempre acho que falta alguma coisa. Pode ser que nessa volta à infância, minha memória tenha esquecido ou inventado algum detalhe, afinal não sou mais a mesma que vivenciou a história. Meu reino pra rever aquela tarde, em todos os detalhes e saber exatamente o que aconteceu! 

Gosto muito dessas lembranças pueris que a memória me faz reviver. Além da vitalidade que me trazem, representam para mim um alento, uma distração, um refúgio nos dias da minha velhice.

- Marli Soares Borges -