G A L E R I A

terça-feira, setembro 28, 2021

O LIVRO DA VIDA


Qual será a primeira história que vou ler?
O Livro da Vida

Eu sempre soube que naquele livro havia mais do que histórias. Muito mais. Aquele livro sempre me fascinou, era tão lindo, tão poderoso. Capa dura, grandes letras douradas. A lombada, a gente via de longe, tão bonita que era. E meu avô vivia lendo, que é pra ter o que te contar, menina! Depois ele guardava o livro, sempre embrulhado num papel de seda. E me contava as histórias, algumas bem tristes, outras alegres e engraçadas. E eu adorava. Ele era um homem bom, muito alegre e de bem com a vida. E sabia contar histórias com alma. E assim como eu chorava, eu também dava boas risadas.

Então cresci e fui cuidar da minha vida. 

Numa manhã, no dia em que completaria 84, meu avô se foi. Fechou os olhos tranquilamente e foi ter com os anjos. E minha vó me deu o livro, dizendo que ele havia deixado para mim. O embrulho era o mesmo, o papel de seda surrado. Eu, morta de tristeza, nem abri o pacote, era muito recente a partida do meu querido contador de histórias, o homem que recheou minha infância de quimeras. Coloquei o livro na estante e prometi a mim mesmo que um dia iria abri-lo para me deliciar. 

O tempo foi passando e minhas crianças crescendo, então lembrei do livro. É agora, pensei, vou matar vários tipos de saudade e ainda abastecer minha mente com lindas histórias para encantar meus filhos.

Feliz da vida corri para a estante. E não é que comecei a tremer? Minhas recordações avivaram-se e a emoção tomou conta de mim. Qual será a primeira história que vou ler? E qual será a primeira que vou contar para meus filhos? 

Lembrei de uma que ele contava e que sempre me fazia chorar: uma família pobre, onze irmãos, todos crianças. Os meninos ajudando na roça e as meninas em casa, cuidando dos pequenos, das limpezas e da comida. Aquela mesa compriiiiiida e aquela panelona, todos os dias... quase sempre a mesma comida, e aquela mãe, sempre trabalhando na roça com o pai, e... sempre grávida. Pobre mulher. Com aquele barrigão e arando aquela terra ressequida, dura como pedra, naquele sol escaldante. De vez em quando ela parava e secava o rosto com a ponta do avental. E colocava as mãos nas cadeiras e forçava as costas para trás, para aliviar a dor. E prosseguia.

Quase chorei de novo.

Ah, meu Deus, com tantas histórias alegres e engraçadas, fui lembrar logo dessa? Não, essa não vou contar primeiro. E eu escutava a voz dele: "espera crescer menina, tu vais encontrar muitas histórias bonitas nesse livro aqui". 

Peguei o livro e corri os olhos para o título: O LIVRO DA VIDA. 

O tempo modifica tanto as coisas... lembrei de meu avô embrulhando o livro para que não estragasse. Não adiantou. As páginas estavam amareladas, as letras apagadas e quase nada havia para ler. Inexplicavelmente duas páginas intactas. Abri. Então pude ver a letra tremida do meu avô: "Vai, menina, agora é a tua vez de ler o livro da vida! Vai e conta tuas histórias para os teus. As minhas eu já contei".

Finalmente entendi tudo. Descobri onde ele "lia" as histórias que me contava. Meu avô era o irmão mais velho numa família de onze irmãos.


- Marli Soares Borges -


NOTA:
Esta é minha participação na BC da Norma: "Histórias do viver" do Blog Pensando em Família. A proposta é utilizar a imagem do post e narrar uma história, ou seja, "selecione um fragmento, evento, uma situação ou fase significativa da sua existência para compartilhar".

sábado, setembro 25, 2021

A DANÇA DAS FLORES

Flores de Georgia O'Keeffe
A Dança da Flores - Blog da Marli

Que lugar é esse, um lugar estranho e fantástico, fonte de prazer e de dor, porta que se abre para dar vida? É isso que me ocorre quando observo essa imagem poderosa, esse manifesto de beleza e sensualidade no desenho dessa flor. Bem que eu gostaria de fazer uma poesia, colorir umas palavras... mas, já viu, eu não sei escrever bonito. Então convidei um poeta... e se você é da minha época, vai lembrar: Jorge Alberto Mendes Ribeiro. E ele vem com um poema maravilhoso, simples e delicado e que tem tudo a ver com a explosão de sentimentos que essa tela é capaz de evocar em mim.

"Amor, causa e consequência"

suavemente
como se as nuvens do céu me recobrissem
e todos os meus poros pressentissem
a espera de anseios libertados.

docemente...
como se os favos de mel do paraíso 
embrulhados, amor em teu sorriso
pelas mãos de Deus me fossem dados...

mansamente...
como a noite entrando pelo dia,
nossa sede de afeto se sacia,
na troca de carinhos vivenciados.

repetidamente...
como quem decora os teus sinais,
eu me aprofundo em ti, cada vez mais, 
e tenho os teus encantos por sagrados.

lentamente... 
como que vertendo nossa essência,
tu és a causa, eu sou a consequência,
e nós dois..um do outro..resultado!

 

As flores de Georgia O'Keeffe

Resolvi trazer umas flores pra você ver. Amo os quadros da Georgia, tanto as paisagens abstratas quanto as flores. Ela foi uma das primeiras pintoras a conquistar reconhecimento mundial dos críticos e do público com suas imagens inovadoras que ousaram desafiar as percepções da época. 
Georgia O’Keeffe (1887-1986). 

                 Flores de Georgia O'Keeffe            Flores de Georgia O'Keeffe             

     Flores de Georgia O'Keeffe          Flores de Georgia O'Keeffe

        Flores de Georgia O'Keeffe            Flores de Georgia O'Keeffe   

           Flores de Georgia O'Keeffe        Flores de Georgia O'Keeffe
 
   Flores de Georgia O'KeeffeFlores de Georgia O'Keeffe

A melhor definição para as representações florais de Georgia O'Keeffe foram ditas pela própria artista na apresentação do catálogo da exposição "An American Place - 1931"
"Uma flor é relativamente pequena. Todo mundo tem muitas associações com uma flor - a ideia de flores. Você estende a mão para tocar a flor - inclina-se para a frente para cheirá-la - talvez toque com seus lábios quase sem pensar - ou a ofereça a alguém para agradá-lo. Ainda assim - de certa forma - ninguém vê uma flor - realmente - é tão pequena - não temos tempo - e ver leva tempo, assim como ter um amigo leva tempo... Então eu disse para mim mesma - vou pintar o que eu vejo - o que a flor é para mim, mas eu vou pintá-la grande e eles ficarão surpreendidos ao levarem tempo para observá-la - Vou fazer até os nova-iorquinos ocupados perderem um tempo para ver o que eu vejo nas flores..." 
E aí, que me dizem?

- Marli Soares Borges -

terça-feira, setembro 21, 2021

DOCE SOFRIMENTO


Pratique a alegria
É mais fácil sofrer do que manter a alegria


Você já notou como tem gente que adora sofrer e se lamentar? que estão sempre ligadas na sofrência?

Fico pensando, de onde teria vindo essa quedinha que temos, em maior ou menor grau, para o sofrimento. Realmente não sei, tenho apenas uma vaga ideia. Lembro que quando eu era criança, às vezes me machucava brincando e chorava, e minha vó corria e me acalentava... e eu ficava feliz. Aliás, todo mundo faz assim com as crianças, é super normal. Também cansei de ouvir "quem não chora não mama". Daí vai que chorar e sofrer virou uma saída. Tenho a impressão, - como disse, é só uma ideia, - de que essas atitudes levam alguns de nós a intuir desde cedo que sofrer sempre traz compensação.

A bem da verdade, é muito mais fácil sofrer do que manter a alegria. Para sofrer a gente nem precisa fazer esforço, o sofrimento vem ao natural. E nós mulheres, principalmente, carregamos um fardo que nos acompanha desde os tempos bíblicos. Sempre fomos encorajadas a sofrer: o sofrimento dignifica, diziam, tudo que se conquista pelo sofrimento tem mais sabor, (pura besteira...) e desfiavam um rosário de sandices na nossa cabeça, e o sofrimento grassou. E nossa saúde (física, mental e social) desmoronou, também pudera, isso acaba com qualquer um. 

Agora, o outro lado da moeda. 

Todo mundo gosta da alegria, tenho certeza. Então porque a gente não vive alegre? Sabemos por experiência própria que a alegria é um sentimento ótimo, nos encoraja e fortalece em nossas tempestades. Nos dá mais saúde, rejuvenesce e embeleza. Quando sorrimos, nosso organismo fabrica anticorpos para combater as doenças. Pura ciência, e da boa...rs. Meu Deus, porque então a gente não sorri mais? Por que a gente não escancara a boca de orelha-a-orelha todos os dias? 

Não sei, mas acho que, aquela história de que "sofrer dignifica", há muito vem contribuindo para impedir que cultivemos, (como uma plantinha), o hábito saudável de manter-nos alegres, mesmo nas adversidades. Parece que temos até vergonha de dizer que passamos uma tarde alegre no nosso trabalho. E o que dizer da culpa, quando estamos alegres no cotidiano, sem alguma razão aparente que possa justificar? 

Embora saiba que manter alegria na vida não é nada fácil, sou a favor da alegria. Sofrer por sofrer me dá nos nervos. E mania de lamentar-se, pior ainda. Acredito que a alegria está entre os ingredientes que tornam nossa vida mais agradável e, portanto, deve ser praticada e doada ao próximo, pois alegria também é uma forma de amor. Amor pela vida e pelas pessoas. 

Então proponho uma coisa.

Sei que tristezas e sofrimentos não são opcionais e que às vezes é difícil até acordar e levantar da cama de manhã. Mas uma hora vai passar. E mesmo que você esteja "até aqui" com a vida, dê um tempo para você. Pratique a alegria. Pra-ti-que. Se está triste e quiser chorar, chore, soluce, entre no buraco, faça o luto, faça o que lhe der na telha, mas depois, (eu falei depois), levante a cabeça, olhe-se no espelho e sorria. (Não, não é bobagem). Sorria mesmo. 

Dê uma espiada nesse truque para enganar o cérebro:

Olhe-se no espelho e sorria de orelha-a-orelha. Force e segure o sorriso, um pouquinho só. Conte até seis. Assim você engana seu cérebro e sem se dar conta, você ficará alegre. Repita uma vez. Até dentro do carro dá pra fazer. Tente, dá certo.

Aprendi isso há bastante tempo num livro, já nem lembro mais o nome, mas é muito legal. Claro, no início a gente custa um pouco, parece meio over, ainda mais quando a gente está no meio da tempestade. Mas vale a tentativa, é um esforço pessoal, um aprendizado, um novo olhar. E a gente consegue recuperar as forças. Não duvide. 

E sorria, pois como dizia Chaplin, a alegria é o único jeito da gente enfrentar os problemas da vida e sair ganhando! Mas não esqueça de levantar a cabeça. Aposto que você nunca viu alguém chorar de cabeça erguida não é mesmo? 

- Marli Soares Borges -

segunda-feira, setembro 20, 2021

VINTE DE SETEMBRO, DIA DO GAÚCHO


Parabéns a todos nós, gaúchos e gaúchas
de todas as querências. 
Que a Virgem Maria, primeira prenda do céu, 
olhe por nós, e que o Patrão Celestial nunca nos abandone.




Em tempos "normais", leia-se sem pandemia, costumamos comemorar a Semana Farroupilha - 14 a 20 de setembro - de um jeito muito especial. Durante esse período, nas repartições públicas as pessoas costumam ir trabalhar usando as roupas típicas do gaúcho. E as crianças vão à escola pilchadas. É um orgulho para nós. 

O ponto culminante da festa acontece no dia 20 de setembro, que é o dia do encerramento dos festejos. Tem sempre um belo desfile e as alegorias contam a história do Rio Grande do Sul. Vem muita gente de todos os cantos do Brasil e também do exterior. É uma alegria genuína, pacífica e sem transtornos. Tem sido assim através dos tempos. Tomara que continue.

Não é um desfile de luxo, mas a beleza e o cuidado impressionam. É lindo ver os peões montados a cavalo e as "prendas" (mulheres bonitas) com seus vestidos coloridos. É emocionante o festival das tradições. O coração fica apertado. E as crianças são um capítulo à parte! Por acreditarmos muito nas crianças, elas são incentivadas a participarem dos festejos, inclusive no desfile, para que fortaleçam o sentimento de pertença e para que a nossa tradição jamais seja esquecida. E elas amam desfilar vestidas à caráter: "de" gaúcho e "de" prenda. E a gente vê os olhinhos brilharem!



A lei nº 4.850/1964 oficializou a Ronda Gaúcha, que passou a ser chamada de Semana Farroupilha e, em 1996, o dia 20 de setembro foi oficializado como o Dia do Gaúcho, passando a ser feriado no Rio Grande do Sul. A Semana Farroupilha vai de 14 a 20 de setembro.

sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra

HINO RIOGRANDENSE
Letra de: Francisco Pinto da Fontoura
Música de: Joaquim José Mendanha


Como a aurora precursora
Do farol da divindade,
Foi o vinte de setembro
O precursor da liberdade.

Estribilho:
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra,
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.

Mas não basta pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo;
Povo que não tem virtude,
Acaba por ser escravo.

Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra,
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.


Um baita abraço, tchê, bem apertado, em toda a gauchada buena que anda campereando por esses pagos da Blogosfera!!!


-Marli Soares Borges-

quinta-feira, setembro 16, 2021

MEU REINO PRA REVER AQUELA TARDE


A Igreja era tão grande, mas tão grande que...

De tempos em tempos começo a fuçar nas minhas lembranças e aparece cada uma! 
O que vou contar é uma história boba, sem a menor graça, mas aconteceu comigo e está na minha cabeça há décadas. E cada vez que lembro, fico com uma pulga atrás da orelha. 


Eu devia ter uns cinco ou seis anos e morávamos - eu e meus avós - numa casa afastada da cidade. Meus dois únicos amigos, Elisa e Marquinhos, moravam na casa ao lado e eram irmãos, lembro deles até hoje. Costumávamos brincar no quintal da minha casa. Mas naquela tarde não teve brinquedo de pega-pega, estava muito calor e o sol fritando. Então resolvemos dar um passeio: visitar a igreja que estava sendo construída ali na esquina, dois terrenos depois. Passamos por debaixo da cerca e saímos escondidos, pois estávamos proibidos de pisar fora do nosso local de brincar. Chegamos na construção e ficamos embasbacados: a igreja era tão grande, mas tão grande que me deu até um arrepio na espinha, parecia que a gente havia encolhido. Olhamos para cima e nosso olhar se perdeu nas alturas. Mas, corajosos, seguimos em frente, pé ante pé, olhos arregalados e bico calado. Todo cuidado é pouco. 

Foi então que vimos os respingos... Pior! sentimos uma saraivada de gotas grossas, milhares, de um vermelho intenso que mais parecia... sangue. Como assim? ninguém está machucado, ai meu Deus, e agora? por que fomos sair escondidos? onde se viu entrar numa igrejona assim, sozinhos? E se tiver um vampiro na tocaia? ou uma alma do outro mundo? por que não ficamos brincando como sempre no nosso santuário? Olhamos pra todos os lados e nada, nenhuma viva alma, um silêncio mortal. E o medo tomou conta de nós. Apavorados saímos dali à toda velocidade, correndo a mil, debaixo daquele sol escaldante. Cheguei em casa alucinada, no maior suadouro e lembro que minha vó me abraçou e não disse uma palavra, apenas secou meu rosto, me deu um pouco d'água e esperou até que eu me acalmasse. Mais tarde ela pediu pra eu contar "tudo", mas não havia nada para contar. Ninguém tinha um arranhão sequer, ninguém sentiu nenhuma dor e ninguém viu nada perigoso. Pensei, pensei e a única coisa real que vimos, uns nos outros, foram uns respingos vermelhos nas nossas roupas. E era coisa pouca. 

Por causa desse "passeio" escondido, fiquei de castigo um tempão sem brincar com meus amigos (que também ficaram de castigo).

Não tem mais minha vó, não tem mais Elisa, não tem mais Marquinhos e minha casa de menina não existe mais. Fecho os olhos para ver melhor e... ah, como eu queria colher margaridas com minha vó, uma vez só, só mais uma, naquele canteiro tão lindo que ela plantava e cuidava com tanto amor! 

Faz bem uns trinta anos que passei por lá novamente, queria rever um pedacinho da minha vida. E avistei a igreja. Sim, ainda existia, desgastada pelo tempo. E para minha surpresa, era uma igrejinha minúscula, pouco mais que uma capela. Meu olhar infantil viu além da aparência e o medo deve ter completado o 'serviço', rs. Quando lembro desse 'causo' sempre acho que falta alguma coisa. Pode ser que nessa volta à infância, minha memória tenha esquecido ou inventado algum detalhe, afinal não sou mais a mesma que vivenciou a história. Meu reino pra rever aquela tarde, em todos os detalhes e saber exatamente o que aconteceu! 

Gosto muito dessas lembranças pueris que a memória me faz reviver. Além da vitalidade que me trazem, representam para mim um alento, uma distração, um refúgio nos dias da minha velhice.

- Marli Soares Borges -

sábado, setembro 11, 2021

O DIA EM QUE AS FLORES DESAPARECERAM


O dia em que as flores desapareceram


Num piscar de olhos, sumiram todas as flores do mundo. A terra ficou feia e triste. Então ela lembrou-se da linda tela que há muito tempo ganhara de sua avó. Foi até seu quarto e ... não pode ser, a tela está viva! Sim! e ali estavam elas, perfeitas: as flores! maravilhosas e coloridas, em todo seu esplendor. Aproximou-se para ver melhor e imediatamente teve a certeza de que eram "de verdade", podia tocá-las e sentir-lhes o perfume. Seu coração transbordou de alegria. Olhou para o céu e agradeceu, obrigada vovó! obrigada! com certeza irei plantá-las! E lá foi ela (re)começar o seu jardim. A vida é uma arte. 


-Marli Soares Borges-



Minha participação no projeto Uma imagem, um conto, proposto pela Norma, do blog "Pensando em Família". A imagem é do calendário dos "Pintores com a Boca e os Pés".

quinta-feira, setembro 09, 2021

OLHOS DE PRIMEIRA VEZ



Olhos de primeira vez


Adoro a emoção que vem quando mudo meu centro de interesse e transito em outros universos. Revivo, quero fazer isso e aquilo, quero mais e mais, quero mexer com a vida, mexer a panela dos doces e lambuzar meu coração. 

Jogo a velhice pro ar, paro imediatamente de bater os pinos e a criança que habita em mim se move de um lado para outro com olhos de primeira vez. 

Muitas vezes me parece que esse sentimento é imaturo, que eu deveria manter um padrão de interesse por mais tempo, um padrão compatível com minha maturidade, sou setentona, tão madura... mas na verdade, eu sigo querendo o que sempre quis: que os encantamentos continuem comigo, tomando conta da minha cabeça, dos meus sentidos, de todo o meu ser! Quero aguçar meus sentidos, afinar minhas percepções e ampliar minha leitura de mundo. 

Essa dinâmica me move e fascina. 

No passado eu nutria uma certa inveja dos pintores e fotógrafos, porque me parecia que o trabalho deles era puro encantamento, na medida em que nada se repetia, pois o cenário sempre se renovava, amparado na incidência da luz que modifica e confere lindos estilos aos ambientes. 

Mas eu estava errada, comprovei mais tarde. 

O encantamento não tem nada a ver com a superfície, ele é uma mágica interior que pode acontecer milhões de vezes na vida de cada um de nós. Para mim, vive acontecendo, estou sempre transitando em universos diferenciados. Acontece assim: ontem eu estava encantada em fazer uma coisa; fiz, fiz, fiz e... hoje não quero mais! quero aprender outra, dar novo rumo ao que venho fazendo com meu tempo. E me encanto com outra coisa e assim por diante. Confinada dentro de casa, não tenho tantas novidades, mas não me importo que meus universos sejam cíclicos. Meu espírito vibra pois está movido pelo interesse verdadeiro. E esse impulso interior coloca meus sentidos afinados com a energia vital e aciona em mim o processo criativo. 

Ainda bem. 

Não fossem esses encantamentos
não sei o que seria de mim
confinada e furibunda
nessa pandemia sem fim


 -Marli Soares Borges-



sábado, setembro 04, 2021

SAINDO DE FININHO


Saindo de fininho


Se você não gosta, esqueça, nem leia. 

Aqui em casa todo mundo gosta. Todo mundo somos: eu, Nilton e Mateus, os confinados. Estamos atravessando a pandemia a três. Para manter nossa privacidade trabalhamos - em home office - na mesma casa, mas em locais diferentes. 

O local mais frequentado é o meu "QG" (sigla de quartel-general), apelido 'carinhoso' que os dois engraçadinhos deram para as minhas instalações. Eles aparecem por aqui quase todos os dias, em horários distintos. Chegam de mansinho, um de cada vez, uma batidinha leve e entram discretamente. E discretamente abrem a portinha do armário, e discretamente fazem uns barulhinhos e discretamente se retiram. De fininho. Às vezes dizem oi, tudo bom? e pronto. Quando me viro pra dar uma conferida, já era. Sumiram. Antes que pensem mal de mim, informo que foi para o bem deles que decidi guardar no meu armário, sem segundas intenções. E está dando certo, eles conhecem as regras e estão carecas de saberem que nesse quesito não tem arreglo, é pegar ou largar. 

As visitas são cíclicas: zero estoque, zero visitas. Nos dias 'zerados' o Nilton nem entra, só abre a porta e me chama pro cafezinho e eu vou e volto. Quando abasteço o armário é porque a liberação está "assinada". Não dou um aviso sequer, mas o faro deles é apuradíssimo e descobrem tudo num piscar de olhos. Deixá-los à vontade? Sem chance: em dois toques vão virar umas bolas e sair rolando por aí. Nhac! Nhac! Croc! Croc! Nada de andar o dia inteiro mastigando e engolindo como se fosse pão, muita calma nessa hora! 

Aposto que você já percebeu o porquê dessa decisão, digamos, pouco simpática. Antes era tudo livre, mas não deu certo. "Assim que sairmos do confinamento a gente vai rever o assunto", prometi. Eles são do bem, levaram na esportiva e ninguém ficou de bico. Melhor assim. 

Se eu também gosto de visitar meu armário? Adoro. Às vezes, pego unzinho e divido em quatro partes e vou mastigando bem devagarinho, saboreando, cheia de culpa. Reconheço que essa atitude é absolutamente condenável para minha bolinha murcha, ah... e eu com isso? rs. 

E aí, adivinhou? Beleza. Estou falando do bombom Ouro Branco da Lacta. É um bombom super comum, sem "sofisticamentos", mas desses bombons comuns, acho que é o único que ainda conserva intacto o sabor delicioso de antigamente. Aqui em casa a gente costuma comprar em embalagens de 1kg, antes de tudo, tem que encher os olhos, lol. 

Eu avisei, se você não gosta, esqueça, nem leia.

- Marli Soares Borges -

quarta-feira, setembro 01, 2021

O MUNDO ENDOIDOU - 77 palavras


Nesse inverno de pandemia fiz tricô pra toda família. Pois não é que o mundo endoidou e tudo começou a voltar atrás? Igualzinho a um filme voltando, quadro a quadro, do fim para o início. E meu trabalho se desfazendo, ponto a ponto. E era a lembrança das caras felizes com os presentes. E era a lembrança da tecitura colorida dos fios.  E era a linha duma vida sendo recolhida de volta ao novelo. E eu perplexa.

-Marli Soares Borges-


Minha participação:  Histórias em 77 palavras - Desafio nº 249 
"E era linha duma vida sendo recolhida de volta ao novelo".
(Recantiga, Miguel Araújo) 

O mundo endoidou
O mundo endoidou